domingo, 15 de maio de 2016

CARTA PARA CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


São José da Coroa Grande, 07 de dezembro de 2015.

Caro Drummond:
Admmauro Gommes e eu, no dia da minha posse
 na Academia Palmarense de Letras
(05 de dezembro de 2015)
Infelizmente você não estava presente em minha posse, no dia 05 de dezembro de 2015, na Academia Palmarense de Letras (APLE). Eu sei que o tempo e o espaço não permitiram a sua presença, entendo. Não se preocupe, eu te perdoo. Justamente por isso, resolvi te manter informado sobre algumas coisas da atualidade no campo literário. Vou repetir umas palavras que falei em meu discurso na APLE e algumas particularidades. Pois é, meu caro amigo imortal, passei dez longos anos sem estudar e durante esse tempo encarei um emprego cansativo como merendeira. Enquanto cozinhava para quinze salas de aula, decidi que não passaria o resto da vida esquentando a barriga no fogão e esfriando na pia. Retomei os estudos e fiz algumas escolhas importantes: A FAMASUL por Faculdade, Letras seria o meu curso e lá chegando, escolhi Admmauro Gommes como o meu maior exemplo. Tenho certeza que você gostaria de tê-lo conhecido. Não sei se serei feliz nas definições, mas tudo isso tem explicação. Tentarei relatá-las.
                No meio acadêmico, percebi que não era somente o eu-lírico do seu poema que tinha uma pedra no meio do caminho. Eu também tinha uma imensa e fixa pedra no meio do meu caminho. Comecei a desconfiar que você escreveu esse poema para mim...
Ela tinha um nome: Insegurança. Gostava muito de escrever, mas eu escrevia somente para mim, lá uma vez ou outra eu mostrava meu texto para alguém e logo em seguida o guardava. Eram poucas as pessoas que sabiam que ler e escrever, eram as minhas maiores paixões. Eu acreditava que só escrevia besteiras, bem, na verdade eu continuo achando isso.
                Essas paixões fizeram com que eu chegasse à FAMASUL, eu queria aprimorar a minha técnica e eu sabia que existia uma disciplina que me ajudaria bastante: Literatura! Porém, isso não seria algo assim tão fácil...
Havia um alguém à frente dessa disciplina: Ele! O temido Admmauro Gommes. Temido? Sim! Todo profissional tem um currículo desconhecido, aquele “documento” que passa de boca em boca, de ouvido em ouvido, como aquela brincadeira de infância “telefone sem fio”, sempre praticada numa constante conversa entre os ex e os futuros alunos do professor em questão. E o que eu ouvia falar sobre ele era que estudar era a sua ordem. Esse professor, segundo os relatos, era um dos melhores da faculdade e não aliviava para aluno. Exigente ao extremo, poeta, escritor de mais de vinte obras. Uma referência no mundo literário. Pessoas desse nível realmente não costumam aliviar. Então, eu sabia bem que deveria me doar ao máximo. E a minha pedra, Drummond? Como eu iria retirá-la, tendo um professor tão exigente? A pedra só aumentava a sua grandeza.
Deixe que eu apresente melhor esse meu professor: Admmauro tem a mania de contar seus textos: “Eu escrevi mil e duzentos, mil e quatrocentos poemas...”. Não sabe ele que nesse aspecto ele está errado (esse foi o único erro que eu encontrei nele, acredite!). Na verdade ele não tem a mínima noção de quantos poemas já escreveu na vida. É impossível chegar a esse número. Sou testemunha da quantidade absurda desse tipo de texto que este homem criou durante suas aulas. E esses poemas? Foram contados? Registrados? Foram publicados em algum livro? Não, infelizmente não! Foram criminalmente apagados por outro professor que posteriormente entrava na sala e precisava do quadro para ministrar sua aula. Então, está mais que provado que Admmauro se perdeu nessas contas, concorda comigo?   
Esses poemas que não foram registrados eram assombrosos para mim. Eu pensava assim: “Como isso é possível? Ele chega com a maior naturalidade e metralha versos nos alunos. Cria poemas com uma facilidade ímpar, são metáforas inquietantes e criadas em fração de segundos”. Essa grandiosidade toda me intimidava. Eu tinha uma vergonha fora do normal de mostrar um escrito meu para ele. Minha “escritora interna” me alertava: “Você não é louca de mostrar as besteiras que você escreve para esse homem que é uma verdadeira máquina de fazer versos, né? Você vai ser ridicularizada, no mínimo! Ele vai pegar seu texto pela ponta do papel, sacudir, e te perguntar olhando no fundo dos seus olhos: ‘Que porcaria é essa, Sylvia Beltrão? Não foi isso que eu te ensinei!’. Eu não pensava em outra coisa. A minha pedra só crescia e inexplicavelmente a minha admiração por ele crescia em igual proporção, ao ponto de eu prometer para mim que faria o possível para tentar ser um plágio daquele profissional.
Eu o estudava, pesquisava, analisava constantemente. Para ser bem sincera, eu continuo fazendo isso. Mas o que mais me impressionou foi o fato de Admmauro me convidar para participar de uma entrevista com o poeta Vital Corrêa de Araújo (outro que você deveria conhecer). Ora, ele nunca tinha lido um poema meu. Aliás, nem eu nunca tinha lido um poema meu, porque eu simplesmente não escrevia poemas. Sim e qual foi a razão de convidar alguém que não “poemava” para encontros de poesia? Eu não sei até hoje essa resposta, porque metade de Admmauro é enigma.
Eu só sei, Drummond, que eu decidi ir porque eu sou fascinada pela Literatura e objetivava aprender mais com esses dois poetas. Mas isso me inquietava tanto, eu ficava me questionando feito uma louca: “Como é, Sylvia? Vai escrever nenhum poema não, é?! Você cursa Letras, é fissurada em Literatura, participa de todos os encontros por prazer. Conhece as técnicas para a produção de um poema. O que te falta? Vai continuar nessa de ficar só ouvindo os poemas dos outros? Se for para continuar assim, é melhor mudar de curso, não acha não?”. Eu vinha nesse meu interno dilema poético justamente no mesmo período em que Admmauro me apresentava aos outros como “poeta” e isso era para mim inadmissível: “Não, de jeito nenhum, claro que não, eu não sou poeta!”, mas ele dizia com aquele sorriso meio de lado bem típico dele: “Você é poeta, Sylvia, você só não descobriu isso ainda”.
Pronto, bagunçou tudo em mim! A minha escritora interna começou a vir com uns lances quase indefiníveis, me dizendo metaforicamente (me preparando, acredito) que eu deveria sim ao menos tentar, arriscar alguns versos microscópicos. “Vamos lá!”, eu prometi isso para ela.
Escrevi o meu primeiro poema na Faculdade: “Terror verde”. Lembro como hoje da timidez que tive ao enviar esse texto por e-mail para ele (e-mail é outra coisa que você também precisava ter conhecido!). Nunca foi tão difícil apertar a tecla “enviar”. Pensava: “Ele não vai gostar! Por que eu enviei isso, hein? Que besteira eu acabei de fazer...”. Para a minha frenética surpresa, ele gostou. E eu custei a acreditar nisso. Bem, se gostou do primeiro, vou tentar o segundo. A crítica foi positiva. Ah, vou para o terceiro! Nessa brincadeirinha, Admmauro conquistou a minha confiança e eu comecei a enviar os textos guardados que eu não mostrava para ninguém. Fiquei “sem-vergonha”, no bom sentido da palavra, lógico! Ao ponto de enviar as maiores besteiras que eu já escrevi na vida, coisas que eu teria coragem de mostrar para qualquer pessoa, menos para ele porque sabia que ele acharia aquilo ridículo, mas eu não me importava mais com isso. Admmauro passou a ser para mim o homem de extrema confiança textual e eu queria mesmo que ele apontasse os meus erros. Eu precisava crescer, aprimorar a minha técnica, afinal, o objetivo maior no Curso de Letras para mim era esse. Pois, acredite se puder, caro amigo, Admmauro foi diminuindo gradativamente o tamanho da minha pedra. Ele deu muitos olhos para os meus textos até então invisíveis. Me convenceu a publicar um livro. Veja que audácia! Meus textos ganharam vozes e através desse imenso incentivo de Admmauro – lógico que essa “culpa boa” foi dele - eu cheguei a ocupar a cadeira 29 de uma Academia. Maravilhoso isso, não acha?
Quando eu recebi essa notícia que me queriam na APLE, eu saí de lá feito uma louca, digitando um monte de mensagens pelo celular (outra coisa que você não conheceu), pelo meio da rua. Coisa de doida mesmo. Eram agradecimentos e intimações do tipo: “Minha posse será no dia 05, não falte, arrume um tempinho para mim, nem que sejam por dois minutinhos...”. Súplicas mil! Ele me respondeu imediatamente, isso me tranquilizou porque eu sei que a outra metade de Admmauro é cumpridora das promessas. Então, se ele deu sua palavra, ela seria cumprida. Porém, eu imaginei que seria uma passagem breve, pois a agenda dele é sempre muito cheia.
Fui surpreendida, ele é mestre nisso! Não somente participou do evento inteiro como discursou sobre os meus textos (os mesmos que eu escondia dele!).  Disse maravilhas. Eu só sei que eu fiquei toda boba de felicidade. Ele falou como o maior conhecedor dos meus escritos, como o maior decifrador das minhas metáforas, foi muito incrível. Você perdeu tudo isso. E durante esse processo todo, enquanto Admmauro discursava, eu pensei muito em você, Drummond. Pensei na nossa pedra em comum. E pude concluir que seu eu-lírico não foi feliz porque passou o tempo inteiro se queixando da danada da pedra que tinha no caminho, mas nada conseguiu fazer para resolver esse transtorno. Bem, eu também passei um tempão me queixando sobre a enorme pedra que tinha no meu caminho, mas Admmauro foi lá, procurou o meu eu-lírico, e com um peteleco suave conseguiu retirar a pedra que tinha no meio do meu caminho. A prova disso está no fato de que antes de Admmauro, eu escrevia e escondia, depois de Admmauro, eu escrevo e publico para o mundo.
O eu-lírico dos meus poemas defende hoje a seguinte ideia: “Admmauro disse que não existe mais pedra no meio do caminho de Sylvia, ele a retirou!”. Está vendo, Drummond, como ele é tão genial? Eu bem que disse: Você deveria ter conhecido ele, ou pelo menos, o eu-lírico do seu poema...


Um abraço imortal de Sylvia Beltrão!

OBS: Escrevi esta carta em forma de agradecimento e reconhecimento ao meu maior exemplo literário, meu professor: Admmauro Gommes.

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