domingo, 1 de maio de 2016

NO ESCURO EU VI

Parece que foi ontem
em meu caminhar havia tempestade
raio, trovão, apagão.

Cheguei numa casa abandonada
antes habitada por nós
lá nos tempos de outrora
as metades das chaves abriram...

E com os meus olhos de gata
no escuro eu vi:
um cenário de guerra
mofo, sujeira, poeira de areia
um monte de barata
e insetos que anunciavam mais chuva.

Senti fome de peixe ao côco
sede de Pitu
e a falta da outra metade das chaves
onde estava?

Saí sem rumo procurando comida
em meio ao apagão
talvez isso fosse solução
mas foi somente ilusão.

Voltei!
a luz não clareava
o buraco negro dentro da casa.

Mas no meu escuro eu via
o vinho empoeirado na mesa
panelas numa sacola
que tinham vindo de viagem.

Escutei passos...
só podia ser você!
A outra metade das chaves serviu!
Essa certeza me consumiu.

Corri com uma vela na mão
te procurei na escuridão
foi em vão
era apenas a minha vã imaginação.

Cheguei ao nosso quarto
e no escuro eu vi
uma cama com dez metros
ainda com a nossa bagunça
que deixamos quando nos amamos.

Nossos vestígios
(Nossos-líricos)
perguntei-os:
"Cadê ele? Busquem-no!"
Calaram-se!

Fiquei impotente,
diminuída, arrasada!
As lágrimas queriam cair
pediam minha permissão.

E o cruel presente
lembrava o recente
passado presente.
No escuro eu via
a minha agonia.

Num ato de desespero
conversei sozinha ao celular
com 5% de bateria
sem ter como recarregar
e a operadora nada operava
enquanto eu te precisava.

Fiquei sem chão!
Mas mesmo assim eu quis correr
naquele apagão.

Precisava reverter a distância
de longe, para dentro
naquele exato momento.

Mas eu estava sem comunicação
sem condução
sem condição
tudo era contramão.

Só sei que no escuro eu vi
teu rosto em cada tijolo
teu cheiro superando e muito
o cheiro do insuportável mofo.

O teu corpo em minha cama
provando que me ama
teu calor superando o frio
daquele temporal sombrio.

Mas era uma visão
mais uma ilusão
da minha saudade macabra
com um chicote na mão.

A vela apagou
a luz acendeu
e no clarão eu vi
que você fisicamente não estava ali

Fiquei martelando as ideias
cá com os meus botões
"Se isso não for amor
ou uma loucura sã
só pode ser macumba das brabas!"

Meu amor, por favor
me analise em seu divã.

Um comentário:

  1. Desejos, sentimentos não sentidos... vontades incompreendidas pelo próprio ego. Ou pelo Id. Assim surgem imagens confusas nascidas de um eu-lírico que se reinventa a cada instante. E prossegue até chegar ao fatídico “... eu vi que você fisicamente não estava ali.” Não sei se Freud explica mas o poético vai além do profético quando um sonho acordado se confunde com as ondas deltas mais lentas de um sono profundo. A resistência é para que não se acorde, jamais. E assim, tudo conduz ao mesmo desnorte como se aflorassem em pétalas os espinhos que nos ferem (... ferida que dói e não se sente – Vide Camões). Mas o sonhar está para o poético e isso basta para que um mundo novo se erga dentro dos escombros. Mesmo que a traiçoeira esperança insista (Escutei passos... só podia ser você!), as imagens que nos incomodam e nos satisfazem ao mesmo tempo nos impulsionam para que o verso saia, como um grito que nos alivia, apenas por nos deixar e se instalar no papel, em forma de texto. Vou me repetir para não desentranhar as entranhas do poema NO ESCURO EU VI, de Sylvia Beltrão: A poesia não é para dizer nada, mas sempre diz tudo.

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